A pandemia deixou sequelas mentais em cada um de nós e eu acredito que será muito difícil o nosso processo de cura e regeneração.
Convivo todos os dias no consultório com pessoas que tiveram perdas de parentes próximos, vínculos físicos “desligados” pela Covid. Eu não fui preparada para lidar com toda essa carga emocional no dia-a-dia de meu trabalho... Felizmente também trabalho com vida, vida que se inicia, vida que emana do amor. Vida que se regenera, cura e até milagres.
Essa mesclagem de início e fim, ganho e perda, cura e regeneração, sequelas e dores, tem provocado em mim um medo terrível. Reacendeu minha fé sim, mas há momentos em que não consigo ser tão forte quanto deveria.
Um dia desses, atendi uma gestante que me pediu que permitisse que sua filha entrasse junto, pois não haveria como deixá-la sozinha na sala de espera. Era uma criança. Crianças estão proibidas de entrar na sala de exame por conta das restrições de acompanhantes pela pandemia. Entretanto, como já era minha última paciente, acabei permitindo. Ela estava já no último trimestre da gravidez. Achei o feto pequeno, perguntei se havia ocorrido alguma intercorrência na gravidez, ela me respondeu: eu tive Covid. Imaginei então que tivesse descoberto a causa de o feto estar pequeno. Ela então prosseguiu: em casa todo mundo pegou, ela no início da gestação; os outros 2 filhos e o marido também. Parece que os pais dela também. Disse que ela e as crianças se recuperaram bem. Mas perdeu o marido e um dos pais. Naquele momento, ficou com a voz embargada e disse que nem sabia como estava vivendo. Disse que os filhos lhe davam coragem para aceitar e enfrentar a realidade.
Segurando o transdutor do aparelho de ultrassom em sua barriga, fiquei olhando as imagens do bebê na tela do aparelho de ultrassom, buscando revelar a ela, pelo perfil e pela face do bebê, mais um motivo para que se mantivesse forte e não perdesse a esperança. Ela chorava baixinho, e eu chorava por dentro. Tentava conter a minha lágrima para que a outra criança que estava ali na sala não se assustasse com o nosso choro. Por alguns minutos, vi que a pequena acariciava os cabelos da sua mãezinha e enxugava-lhe as lágrimas, repetindo baixinho: o papai está no céu mamãe, não chore.
Na minha cabeça, tentava organizar as minhas idéias e ia imaginando o tanto que essa família tenha experimentado de dor. As perdas na pandemia foram assim na sua grande maioria. Rápidas! Com um impacto estrondoso e com uma rapidez avassaladora. Impedidos até mesmo de prantear os seus entes queridos, milhares de famílias foram impactadas pela perda de seus esteios. Me compadecia em pensar como aquela família se sustentaria dali para frente sem o esteio principal. Me compadecia a dor daquela mãe que trazia no ventre um filho que não conheceria o seu pai. Não consegui dar o melhor de mim naquele momento. Não me lembro as poucas palavras que falei. Minha alma entristeceu e emudeceu. Hoje me culpo por não ter sido mais humana. Eu não consegui.
Em um esforço para acabar o exame, concentrei-me novamente na avaliação do bebê para encerrar logo. No meu check-list vi que era um feto pequeno, anatomia normal, coração sem defeitos estruturais óbvios, anexos sem alterações. Voltei na face do bebê e notei uma alteração. Tinha uma dacriocistocele.
Dacriocistocele é uma obstrução do ducto naso-lacrimal do bebê, aquele canalzinho que se abre no olho e por onde a lágrima é expelida. Esse acúmulo no conduto naso-lacrimal forma essa “bolsa” de líquido, que é visualizada no ultrassom entre as órbitas oculares. Pode se resolver espontaneamente até o nascimento, mas em alguns casos pode persistir e deve ser acompanhada.
Tentei explicar de uma forma bem natural e simplificada para a mãe essa alteração, e ela, diante da minha tranquilidade ao falar da alteração, parece que não se perturbou.
Fiquei aliviada. Despedi-me da paciente e desejei-lhe do fundo do meu coração toda sorte, consôlo, força e luz.
Ao sentar-me para fazer o laudo, imaginei, o quanto de vezes me fizeram a seguinte pergunta: - Dra, criança chora na barriga da mãe? Eu escuto choro e gritinhos do meu bebê.
Eu sempre respondi, sorrindo: não, não chora e nem grita! Chorar pra quê? Não inventaram nada no mundo melhor que o ventre materno!!
Até quando continuarei respondendo assim? A medicina me treinou para isso.
Falem o que quiserem, gostam de dizer que eu romantizo tudo, enxergo tudo com alma de poesia, mas se é assim, então que seja esta, uma crônica de lamento. Do fundo do meu coração, acho que essa criança chorou! Chorou pela perda, chorou pela dor da perda, chorou pelo sofrimento da mãe, chorou pelo sofrimento da família, chorou pelo medo..... Chorou tanto, que até represou as lágrimas, formando o pequeno cisto naso-lacrimal...
O élan vital entre aquele bebê e sua mãe conectou aqueles dois corações que choraram juntos a dor de tantas perdas.
Que as lágrimas da humanidade e das famílias “tocadas” pelas perdas e sequelas da Covid que choram hoje possam aflorar os nossos sentimentos de empatia, compaixão, solidariedade e amor e que essa CONEXÃO de almas possa nos impulsionar a buscar os rumos da aurora que há de vir.
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